• Conto - feliz véspera de carnaval
A noite ia animada, Leonor servia copos atrás de um balcão, já para mais de quatro horas sobre uns sapatos salto agulha, lindos de morrer. Tinha-os comprado de forma caseira a uma amiga que lhe dissera certo dia;
- Minha querida, tenho lá uns sapatinhos que são a tua cara!
Leonor recordou ter transfigurado alguns traços faciais e se ter apavorado ao pensar no mau gosto da amiga, duvidara que fosse a sua cara ou por quem ela a tomava!
- Aí sim minha linda? Quando vemos isso? Bem sabes que sou louquinha por uns belos saltos altos!
De postura desconfiada, esperava sem grande ânimo que a amiga tirasse os sapatos do fundo do armário.
- Credo Maria! Parece que tens escondido um tesouro! No fundo do roupeiro? Uns sapatos?
- Cala-te Leonor, o meu Jorge não pode saber…
Leonor atarantada rodou a cabeça para a porta e viu-a fechada, descansou e aguardou em silêncio, o marido da amiga andava num corrupio caseiro, danado com as maravilhosas incapacidades da tecnologia informática.
Viu os sapatos e amou-os de tal jeito como nunca lhe sucedera. Seus olhos estontearam com tamanha beleza.
- Mariaaaaaa…. Céus… que azul celestial, maravilhosos!!!
Pagou o preço à amiga sem questionar, enfiou-os num saco de hipermercado e com eles debaixo do braço passou por Jorge com um sorriso inevitavelmente sarcástico, odiava aquele traste desde o casamento da amiga, achava-o um energúmeno de duplo olhar, até os óculos pavorosos do gajo a enervava!
A noite estava óptima, o bar animado e apesar do frio que entrava pela porta batendo no corpo de Leonor, ela mantinha-se frenética com mais 8 centímetros de mulher, servia imperiais atrás de imperiais naquela véspera de carnaval.
Amainou o movimento, já eram mais de cinco da manhã, as colegas de trabalho iam sendo dispensadas do serviço e à saída sussurravam ao ouvido de Leonor.
- Apareces na Maria Lisboa depois de fechares?
Leonor gesticulava não ao som da música do bar agora mais baixa. Estava cansada, apesar de tudo mas não dos pés ou da barriga das pernas, os brilhantes sapatos faziam milagres como nenhuns outros da sua colecção, embora a noite tinha sido muito mexida e precisava descansar.
Sozinha assoprara as últimas velas acesas das mesas, olhara em redor confirmando que nada ficava ligado. Na rua, já deserta, agacha-se fechando a grade do bar e sentira-se acompanhada por um som longínquo de paços, de sapatos na calçada que se tornaram mais lúcidos à aproximação.
Dá o conclusivo rodar de chave e levanta-se com a sua mega-bolsa a tiracolo, vira-se para apanhar caminho e sente uma mão encaixar na sua, de rosto baixo vê uns pés com calçado clone ao seu. Em placidez caminham juntos, fazem o mesmo trajecto, sobem a rua, Leonor pára ao lado do seu carro e finalmente sobe o olhar para contemplar um rosto sensualmente bem maquilhado, uma cabeleira loira lustrosa, um vestido prenunciador de todas as curvas corporais, um ser magnificamente belo, aromático e luminoso que lhe tira da mão as chaves do veículo. Leonor sente-se tranquilamente vislumbrada, deixa a criatura junto a si contornar o seu próprio carro, este abre a porta do pendura para a sentar no transporte, fecha a porta delicadamente e igualmente penetra a viatura, liga-a, agarra-se ao volante e arranca direccionada já a um destino certeiro. Leonor extasiada no seu próprio carro, conduzida por uma mulher alheia.
Abre-se um portão de garagem ao reconhecimento de som vocal, “o salto sou eu!” sobem a rampa, a misteriosa guia desliga o motor. Leonor vê-se infiltrada numa luxuosa caixa de betão, janelões que acabam em arco perfeito onde a luz nocturna viola os únicos objectos que se encontravam a meio daquele loft, uma colossal cama vestida a cetins e uma banheira Luís XV cheia de água fumadora. Saem, deixando ambas a porta aberta e encontram-se em frente ao carro. Encaixam novamente as mãos e encaminham-se para a banheira, descalçam os fabulosos sapatos e entram vestidas na água. Ressoa por magia, uma música voluptuosa, despem-se ao sabor de beijos e de carícias sedutoras, a quente água desonra as maquilhagens de ambas, escorre make up pelos seios de Leonor, desenham-se linhas dançarinas de rímel no ainda vestido da amante misteriosa.
Leonor deixa-se levar por ela, por aquela secreta vontade e despe-a, despe-a e despe-a… julgando encontrar uns seios declarantes e atractivos mas depara-se com um deserto de plana areia e despe-a, despe-a, despe-a, tira-lhe peça a peça que atira para fora daquela banheira e sente um palpitante falo errante! Salta-lhe o coração, assusta-se, agarra a cabeleira luzente já meio vacilante e atira-a contra o chão de tábuas corridas. Ela é um Ele, um magnífico espécime ELE!
Amam-se na banheira, encharcam a madeira, e alagados voam para a cama amante. Delirantes, atingem como nunca antes a suprema dor de tesão, a dor na paixão, a vontade de pronunciação de promessas, palavras galantes, amantes, mas não. Não há palavras, nunca houvera…
Leonor acorda nua em si, nua em redor, sobre um silêncio frio, uma luz assassina, levanta o corpo quente perante o vago, observa a banheira vazia, seca, sai da cama, deambula descalça sobre o soalho que agora lhe ouve sinistro ranger, não há nada, nada, nada, só ela, a cama remexida, a banheira desabitada, e o carro que contínua com ambas portas abertas. Não há um casaco, não há um vestido, umas meias umas cuecas sequer… Não há nada, nada, nada! Entra nua no carro, lívida, encontra as chaves imaculadas na ignição, liga o motor, fecha as portas, gira totalmente o volante, acelera doidamente, em pião, no meio do salão quase levando de rasto os únicos objectos daquele gigante jazigo, desce a rampa e encontra o preto portão. Em pânico observa as paredes despidas, o coração não pára de lhe bater cada vez mais forte, está gelada, nua, desamparada, desatenta, consegue ouvir um zumbido, no seu lado esquerdo nasce do chão um bastão perfurado e ouve uma foz feminina meio metalizada; “Código por favor”… Leonor salta do banco, assustada roda o manípulo e abre a janela e ouve de novo “código por favor” Leonor grita; quero sair!... “Código inacessível”, grita; quero sair, foda-se, quero sair! “Código por favor”… Olha em frente como se encorajando a transpor com o seu frágil veículo aquele negro portão e repara nuns sapatos entalados, poisados sobre o tablier, não os seus sapatos, outros, aqueles de linhas iguais mas de sua cor púrpura. Um postit na alma de um dos sapatos onde se lia: Código: o salto fui eu! …estremece de novo aos som do pedido “Código por favor”… e grita O SALTO FUI EU! CARALHO!!!
O portão abre lentamente, Leonor chora no meio de um sorriso libertador e conduz pela cidade. De sorriso passou a gargalhada, limpou as lágrimas, estava frio mas abriu a janela, viu o azul mar da marginal.
Encostou, calçou os sapatos púrpura e nua saiu do carro, ao andar sentiu que aqueles já não eram o seu número, subiu o pequeno muro, descalçou os sapatos enfeitiçados e com força atirou-os, lançou-os às pedras, sabia que pela noite seria maré cheia e levaria aquela tentação para um outro lugar, para um outro qualquer mágico lugar…
(continua)
as maravilhas da bissexualidade...e do desejo.
ResponderEliminarPara que outro lugar iram os sapatos??? Tu querido João diz-me para onde?
ResponderEliminarBeijo
"assoprara"!!??
ResponderEliminarMais-que-perfeito
ResponderEliminareu assoprara
tu assopraras
ele(a) assoprara
nós assopráramos
eles(as) assopraram
Querido Prumo, estamos cá uns para os outros verdade?
Beijo
Para uma cabra tão moderna é muito "antiga" e popularucha na linguagen.
ResponderEliminarÉ que essa forma verbal é do povão, daí a surpresa do Prumo.
Eu gosto de ser tudo meu caro prumo, moderna; antiga; popularucha ou sofisticada! E já me chega que você se surpreenda, mesmo que pela negativa. Assim poupo-lhe os elogios!
ResponderEliminarBeijo
Giro! Gostei muito! ;)
ResponderEliminarAdorei a parte da em que ela se transforma num ele...super erótico!
ResponderEliminarBeijos