Este pêlo branco

Aqui, nesta montanha batem os primeiros matinais raios de sol e quando este desce e se apresenta o luar tem-se a sensação de que nada se apresentou diferente do que já foi, do que é ou que poderá vir a ser. Não espere nada, nem deslumbramento nem desilusão, não é essa a brancura que se pretende.
Anseie o nulo para que atinja o supremo início do tudo de novo.
Muito gosto,
Cabra Branca.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Sr. Beijados

Rodava na Praça da Alegria. Sempre era à quarta-feira. Houvera anos a fazer o biscate sem intenções rendosas. O Sr. Beijados era ilustre criatura, educado galante, bem afigurado e bem falante. Todas as quartas se apresentava, não importando qual intempérie, feriado nacional e muito menos municipal, nem convindo nos religiosos. Ali era o consultório de ar livre, onde não se inscreviam listas de espera, não se preenchia relatórios, nem se passava receituário. Ali era a Praça, a Praça da Alegria.
O Sr. Beijados curava os males da saudade, tão português sentido, defronte à placa mármore, onde gravado agradecimento se enaltece Alfredo Keil pelo hino mais belo, lá ele aninhava-as em seu terno beijo. Tão solene preparo, tão suave registo, tão doce carícia. Chegava assim a calma. Se o vento soprava, amainava de ternura, se pingos gelados caia, aquecia suas suaves gotas, se o sol de chapa queimava, soprava uma brisa mansa refrescando o sabor supremo de afago do Sr. Beijados.
Elas eram viúvas saudosas, casadas mal amadas, solteiras deixadas, adolescentes desamparadas, vizinhas traiçoeiras, passageiras curiosas, mulheres de qualquer porte, velhas lixadas, novas de má sorte e elas eram nunca de mais! Sr. Beijados sem boca a medir, confiante em seu paladar nem por atrevimento usava spray oral, não falseava seu sabor, seu beijo apaziguador.
Eram segundos, nem minuto chegava a ser, aquele beijo calmante, aquele natural tranquilizante... e ainda há quem anseie por aquele meio semanal, aquelas tardes de quarta-feira lá na Praça, na Praça da Alegria.
E o Sr. Beijados? O Sr. Beijados não deixara discípulo! Que falha crassa, que rude falta de boca de obra!

sexta-feira, 25 de junho de 2010

pórnoi






Lembrar Miguel.
Miguel trocava sexo. Uma troca consciente por interesses não sentimentais, afectivos ou de prazer. Efectivamente dinheiro vivo não existia, era um cambio mascarado de necessidades correntes.
Miguel permutava a sua arte, numa prática sexual inata ao serviço encomendado de atenções calorosas. Ardoroso engano adorado. Nada se questionava, nada se considerava volátil, nem certo, nem triste nem muito menos aflijo num agudo travo acre.
Miguel era porta-estandarte do desejo ausente. Sem culpas, guiava os pecados do fingimento. Era no acaso de uma qualquer mulher extraviada, que ele enaltecia-lhes as vontades sôfregas de gemido, roubava-lhes os beijos sentidos e violava os espaços escondidos do templo dos amores passados.
- Faz-me um favor Miguel.
- Sim faço-te minha querida. Diz.
- Vai-me lá abaixo... - Não Miguel, valha-me Deus! Vai lá abaixo à mercearia da Augusta e pede-lhe para subir, ...é que hoje estou farta de homem!
Miguel nunca mais fora o mesmo, Miguel e do que dele se recordara.

sábado, 19 de junho de 2010

18ª Consulta

quer-se a jeito
Cara Dra. Cabra,
eu gostava muito, mas nunca me apaixonei por mulheres. Será defeito ou falta de jeito?
Desde que me lembro que sonho com elas, são meus objectos sexuais de excelência, adoro-lhes o corpo, admiro-lhes o espírito, dedico algum do meu tempo a estudá-las.
Muitas dão-me tesão, algumas entusiasmam-me, mas nenhuma me monopoliza os pensamentos por muito tempo.
Já lhes provei os lábios e a pele, já saboreei o mel, já lhes dei prazer mas ainda não me rendi a nenhuma.
Com eles basta por vezes um olhar, um sorriso, e eu já sei que vou andar a suspirar durante uns tempos. O corpo treme todo, sinto na barriga o fogo, os sentidos apuram-se e a inspiração aumenta.
Bem sei que ainda devo ter muito tempo pela frente, mas sou assim, a modos que impaciente.
Quero experimentar o outro lado, mas sei que não é uma coisa que aconteça porque se quer, senão provavelmente quando menos se espera.
Mas isso não me basta. Quero pôr-me a jeito, quero provocar.
Tem algum conselho para me dar?
C.
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Curiosa C, lamento dizer-lhe que nem é feitio nem falta de jeito, não é vontade nem falta de apetite!

O sonho é isso mesmo, um delírio de desejo que se pode ou não conquistar, muitas das vezes lutando sobre as maiores dificuldades, mas o desejo de paixão é um sentimento que não se compra nas drogarias nem se manda vir pela internet, já objectos sexuais é em qualquer virar de esquina.

Direi que você gosta de brincar sexualmente, gosta do perigo de provar, gosta de provocar e isso é um jogo bom de se agitar de cima.

Não sei por outro lado se você respeita a essência do homem, porque a elas diz que respeita a eles eu arriscarei dizer que você rejeita, quem sabe por ter em demasia, fácil de mais, um simples olhar, um sábio sorriso e já andam eles ao seu sim suspirar!

Todos temos muito para aprender, nunca saberemos tudo, isso sim é um sonho, mas dos impossíveis!

E cara C. a pressa é inimiga da perfeição, nunca se esqueça.

Atenciosamente, esta Cabra.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

De alguém especial

A Minha Mulher

Todos os dias de manhã desarrolho o frasco e deixo cair umas poucas migalhas lá para dentro. Com muitos cuidados para que não fuja minha estimada mulher. As migalhas são de variados tipos de pão: broa de milho, carcaça ou baguette. Sempre gostei de estimar a minha mulher com o melhor. É com grande apreço que a paparico com carinhos. Tem dias em que sou realmente generoso e lhe deixo cair pelo tampo do frasco um torrão de açúcar. Fico regalado de a ver feliz pela prenda e vejo-a percorrer as paredes redondas do frasco em sinais de agradecimento. Outras vezes, corto frutas várias em pequenos pedaços e vejo-a lambona e de olhos arregalados, chupar o sumo doce das frutas.

Durante o dia, enquanto vou trabalhar, substituo a tampa do frasco por um coador do leite. Assim fico seguro que o ar circulará facilmente por todo o frasco e minha mulher não morrerá de calores ou asfixia. Quando regresso a casa, tenho uma grande recepção de felicidade. Minha mulher passeia-se pelas fronteiras de vidro cumprimentando-me com zumbidos que nem sempre percebo. No entanto gosto. São gestos humildes e naturais de contentamento.

Depois de jantar vemos uns programas que passam na televisão e tenho muitas conversas com ela sobre o que passa na caixa fosforescente. Poucas vezes me responde e quando o faz, é sempre em sussurros que ainda estou a aprender a interpretar. Tudo isto faz parte da convivência e da descoberta de cada um. Ocorre por vezes, um aborrecimento da minha parte quando a minha mulher se cala e esfrega as patas umas nas outras: começando nas da frente até às de trás. A falta da atenção dela para comigo leva-me a agitar o frasco e provocar-lhe uma reacção. Quando assim é, esvoaça pela vitrina do frasco e resmunga coisas sibilantes às quais não ligo.

Antes de me deitar, coloco o frasco dela a meu lado na cama e contemplo-a. Certifico-me que a tampa ficou bem apertada nas roscas e conto-lhe uma história de um livro que satisfaça os dois. Quando apago a luz sinto uma felicidade eterna em ser casado com uma mosca respeitável e obediente. E nisto olho para ela, a ver se já dorme.